terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Pablo Neruda - Soneto L X X X I I















SONETO LXXXII

Amor meu, ao fechar esta porta noturna
te peço, amor, uma viagem por escuro recinto:
fecha teus sonhos, entra com teu céu em meus olhos,
estende-se em meu sangue como num amplo rio.

Adeus, adeus, cruel claridadeque foi caindo
no saco de cada dia do passado,
adeus a cada raio de relógio ou laranja,
saúde, oh sombra, intermitente companheira!

Nesta nave ou água ou morte ou nova vida,
uma vez mais unidos, dormidos, ressurgidos,
somos o matrimônio da noite no sangue.

Não sei quem vive ou morre, quem repousa ou desperta,
mas é teu coração o que reparte
em meu peito os dons da aurora.

PABLO NERUDA
In:"Cem sonetos de amor"

Talvez Tenha Tempo - Pablo Neruda


















TALVEZ TEMOS TEMPO


Talvez temos tempo ainda
para ser e para ser justos.
De uma maneira transitória
onde morreu a verdade
e embora o sabe todo mundo
todo mundo o dissimula:
ninguém lhe mandou flores:
já morreu e ninguém chora.

Talvez entre esquecimento e apuro
um pouco antes do enterro
teremos a oportunidade
de nossa morte e nossa vida
para sair de rua em rua,
de mar em mar, de porto em porto,
de cordilheira em cordilheira,
e sobretudo de homem em homem,
a perguntar se a matamos
ou se outros a mataram,
se foram nossos inimigos
ou nosso amor cometeu o crime,
porque já morreu a verdade
e agora podemos ser justos.

Antes devíamos pelejar
com armas de obscuro calibre
e por ferir-nos esquecemos
para que estamos pelejando.

Nunca se soube de quem era
o sangue que nos envolvia,
acusávamos sem cessar,
sem cessar fomos acusados,
eles sofreram, e sofremos,
e quando já ganharam eles
e também ganhamos nós
havia morrido a verdade
de antiguidade ou de violência.
Agora não há nada que fazer:
todos perdemos a batalha.

Por isso penso que talvez
por fim pudéssemos ser justos
ou por fim pudéssemos ser:
temos este último minuto
e logo mil anos de glória
para não ser e não voltar.

Pablo Neruda

Pablo Neruda - Metade












Metade

Que a força do medo que tenho,
não me impeça de ver o que anseio.

Que a morte de tudo o que acredito não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito,
mas a outra metade é silêncio.
Que a música que eu ouço ao longe,
seja linda, ainda que tristeza.

Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
mas a outra metade é saudade.
Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece, e nem repetidas com fervor;
apenas respeitadas, como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos...

Porque metade de mim é o que ouço,
mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço...

E que essa tensão que me coroe por dentro seja um dia recompensada.

Porque metade de mim é o que eu penso
mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste,
e que o convívio comigo mesmo,
se torne ao menos suportável.

Que o espelho reflita em meu rosto, um doce sorriso, que me lembro ter dado na infância

Porque metade de mim é a lembrança
do que fui,
a outra metade eu não sei.

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria para me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais.

Porque metade de mim é abrigo,
mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta,
mesmo que ela não saiba

E que ninguém a tente complicar porque é preciso simplicidade para faze-la florescer

Porque metade de mim é platéia,
e a outra metade é canção

E que a minha loucura seja perdoada,

Porque metade de mim é amor,
e a outra metade...também.
....
Pablo Neruda

Pablo Neruda - Saudades












Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...
Saudade é amar um passado
que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver um futuro que nos convida...

Saudade é sentir que existe
o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos
que continuam...

Só uma pessoa no mundo deseja
sentir saudade..
aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos;
Não ter por quem sentir saudade,
Passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca
ter sofrido.

Pablo Neruda

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Mário Quintana - Vento e eu











Vento e eu

o vento morria de tédio
porque apenas gostava de cantar
mas não tinha letra alguma para a sua própria voz,
cada vez mais vazia...
tentei então compor-lhe uma canção
tão comprida como a minha vida
e com aventuras espantosas que eu inventava de súbito,
como aquela em que menino eu fui roubado pelos ciganos
e fiquei vagando sem pátria, sem família, sem nada neste vasto mundo...
mas o vento, por isso
me julga agora como ele...
e me dedica um amor solidário, profundo!

Mario Quintana

Mário Quintana - Vidas










Vidas

Nós vivemos num mundo de espelhos,
mas os espelhos roubam nossa imagem...
Quando eles se partirem numa infinidade de estilhas
seremos apenas pó tapetando a paisagem.

Homens virão, porém, de algum mundo selvagem
e, com estes brilhantes destroços de vidro,
nossas mulheres se adornarão, seus filhos
inventarão um jogo com o que sobrar dos ossos.

E não posso terminar a visão
porque ainda não terminou o soneto
e o tempo é uma tela que precisa ser tecida...

Mas quem foi que tomou agora o fio da minha vida?
Que outro lábio canta, com a minha voz perdida,
nossa eterna primeira canção?!

Mario Quintana

Fernando Pessoa - Posso










POSSO....

"Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes, mas
não esqueço de que minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá à falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios, incompreensíveis e permeados de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da
própria história.E atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar
um oásis no interior da sua alma. E agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida. Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
E saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um "não".
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.
Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo... "
(Fernando Pessoa)